O desporto é apaixonante porque espelha a vida. A frase é clichê, mas enfim, originalidade sempre é meio porre. Ia escrever que imita a vida, mas é espelho, reflecte, ecoa a partir dela. O futebol, por exemplo. Tem o craque, o cabeça de bagre, o juiz (ladrão), os seus auxiliares (ladrões) e, agora, o war (digiladrões). Tem o jogador violento, o genial, o chato que impede nossos gols, as leis, o tempo, os objectivos, a torcida, a noção de time, a identificação por cor, tradição ou símbolo e, claro, o resultado final. Há muito elemento vivo aí, para além de atletas suadões e as suas declarações da praxe.
Sou torcedor do Inter, para que se tenha uma ideia do meu nível de sofrência. Desde 2006, quando foi campeão mundial, da recopa, da libertadores, do gauchão e da sul americana, veio o tempo da seca. Uma seca danada, um não ganha convicto, um perde sempre, um vice habitual, um risco constante de queda ou de não atingir o título, qualquer que seja ele.
Dizia que há paixão no desporto. No futebol, talvez por ser uma coisa mais barulhenta e emocional, a coisa toque mais fundo. Digo isto porque nunca percebi grandes deslocamentos lacrimais num jogo de Damas. Ninguém disputa um par ou impar na raça. Não existe registo de um pega interminável entre dois adversários num torneio de Yoga. Mas no futebol, senhor. Todos entendem. Todos sabem. Todos jogam. Todos orientam. Todos, todos, todos, torcem. No meu caso é mais grave, já que o time do Inter reage ao meu estado de espírito, é científico. Se estou com sono, o time fica lento. Se estou agitado, o passe sai errado. Estando distraído, o golo do adversário entra. Tenho que estar equilibrado, atento, harmonizado e pacificado para que o colorado vença, o que apenas demonstra como tenho vivido nas últimas duas décadas.
Foi do futebol, e do Inter, que vi uma das cenas mais incrivelmente inesquecíveis que já vivenciei. O inter, claro, perdia. Acho que terminou mesmo a 2×2. O outro time era visivelmente superior. O que faltava em talento sobrava em determinação, vontade, entrega táctica, sangue, suor e lágrimas. Era preciso uma vitória expressiva em número de golos. Era impossível e se confirmou isso. (Adoro a frase “não sabendo que era impossível foi lá e soube). O jogo acabando, o inevitável da desclassificação se tornando real, então o estádio começa a ouvir um Innnnnterrr, Innnnnterrrrr, Inteeeeeerrrr. Aquilo foi tomando todo o espaço, os gritos agora eram de Inter, eu te amo, Inter eu te amo! Mudou para uma música, que milhares de vozes entoavam, afirmando algo como “nada nos vai separar”.
Foi de arrepiar até aos cílios, aquela declaração pública de reconhecimento do nosso esforço, do reconhecimento da superioridade alheia, do reconhecimento da derrota, que se acercava também do reconhecimento de um amor, que estava acima do resultado imediato. Era a festa do time que guerreou junto com o seu 12º jogador, que fez tudo a plenos pulmões. Era o encontro do perdão pela derrota com a alegria pela existência de ambos, torcida e jogadores. Depois do apito final, ninguém arredava pé. Todos gritavam, beijavam o escudo, tremulavam as bandeiras vermelhas. Havia ali a alegria entre os extenuados e os apaixonados, os amantes, os determinados, os inquebráveis, os falíveis, os que não venceram, os que ficaram pelo caminho, os que caíram diante do que lhes cabia de imperfeição. Era uma homenagem àqueles que em campo deram tudo o que podiam e aqueles que, fora de campo, ofereceram uma redenção só possível aos amantes e ao seu objecto de amor.
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