O bar funcionava de segunda a sexta-feira, num bar com aspirações de se tornar um bistrô. Don Jorge era o responsável, auxiliado pelo seu filho, Jorgito. Ambos eram desconfiados e seguiam um conjunto de regras que permitiam ao bar usufruir de uma relativa tranquilidade. Não sei a que horas abria, mas fechava com a pontualidade britânica às 21h. Assim sendo, a última bebida tinha de ser pedida até às 20h40 e a conta fechava nesse preciso momento.
A gerência do estabelecimento não servia cerveja, alegando que era uma instituição respeitada que não permitia bêbados. A cerveja estava sempre gelada. No verão, então, suava mais do que os clientes que faziam do bar a sua base.
Eram os tempos da televisão de tubo, de cinco canais e, claro, da novela das oito da Globo. Ainda assim, sem a infinidade de informação que circula online nos dias de hoje, as discussões naquelas primeiras horas da noite decorriam em sintonia com a insaciável curiosidade humana por encontrar respostas para dúvidas existenciais, para questões do quotidiano, para questões sobre o futuro.
Segunda-feira foi dia de rever os resultados dos jogos. Uma vez sorteada a lista, não houve ausências e ficou claro que ninguém tinha sido selecionado. Havia muitas explicações para justificar as derrotas da equipa querida. Os adeptos tricolores, nos dias maus, ainda acreditavam no Sobrenatural de Almeida, personagem interpretada pelo maestro Nelson Rodrigues, que, aliás, morava no prédio em frente ao bar. Os adeptos da equipa da estrela solitária repetiam, com mais frequência do que gostariam, a frase do jornalista Paulo Mendes Campos: “Há coisas que só acontecem ao Botafogo”. Eram os tempos da democracia Corinthiana, talvez por isso o povo basco, mesmo perante resultados adversos, mantivesse a dignidade que advém de apoiar uma equipa pioneira no combate ao racismo. Os adeptos do Flamengo — os mais queridos — não se deixaram abalar, mesmo com resultados negativos; o árbitro e a sua mãe estavam sempre lá para justificar o injustificável.
Terças, quartas e quintas-feiras tinham uma agenda diferente, impulsionada mais pelo extinto Jornal do Brasil do que por O Globo. Opiniões, visões, comentários e pontos de vista sobre os mais diversos temas animavam a conversa. De frente para a rua e com o rabo apoiado no balcão, o local oferecia um excelente ponto de observação para observar a vida selvagem que passava pelo bar. O bar era discreto, não havia cotoveladas nem “olha aquele rabo”, e a cumplicidade era evidente nos pequenos gestos que substituíam comentários mais expansivos, sobretudo quando uma vizinha ainda mais bonita passava por ali ao sair.
A austeridade deste bar nos comentários destoava do padrão comportamental estudado pelo meu amigo Baiano. Depois de anos de cotoveladas ao balcão, Baiano é perentório ao afirmar que 99% dos barmen que frequentam as discotecas espalhadas pela cidade são constituídos por machos alfa, ou seja, vendem uma imagem semelhante à que o futuro recluso vinha espalhando nos comícios recentes: gananciosos, infalíveis. Caetano Veloso diria, sabiamente, “é pura fama”. O parceiro de Baiano, o Summa Cum Laude das discotecas, Moacyr Luz, tem uma definição precisa para quem demonstra este tipo de comportamento: “É puro Metro Lion”, diz Moacyr, “3 rugidos e o resto é poesia!”

Em frente ao bar, existia uma bonita farmácia, com duas enormes montras de cada lado do portão. Como era tempo da queda do Muro de Berlim, do empreendedorismo e do sonho de ser trabalhador independente, sem ter de obedecer aos caprichos do patrão, a ideia de comprar a farmácia e transformá-la num bar foi equacionada mais do que uma vez. Estava à venda; os proprietários, que estavam ao balcão há mais de 40 anos, pensavam vendê-la. A ideia era mantê-la como estava, com um nome definitivo, Pharmacia. Bastaram substituir os medicamentos por bebidas e instalar mesas com tampo de mármore, e o local estava pronto. Numa qualquer noite de Outono, o nosso bar foi comprado pela Drogaria Pacheco, dando início a um boom de farmácias que hoje assola todas as cidades do país, revelando que a nossa saúde está a ir de mal a pior.

Pouco antes deste choque de realidade, numa tarde quente de fevereiro, a discoteca estava cheia e uma chuva de verão anunciava a chegada de nuvens carregadas. Neste cenário, uma traça-bruxa, também conhecida como traça-atlas (Attacus atlas), voou suavemente para o interior. Uma traça-bruxa, também conhecida por traça-atlas ou borboleta-atlas (Attacus atlas), uma borboleta enorme com uma envergadura de quase 30 cm, pertence à família Saturniidae. No imaginário brasileiro, estas borboletas grandes e escuras estão associadas a maus presságios, morte e infortúnio. O seu voo foi acompanhado pelos frequentadores que a viram aterrar suavemente numa garrafa de cachaça Pitú.
Segundos depois, dirigiu-se para a cozinha, e o seu movimento foi seguido pelos olhares apreensivos dos frequentadores. Vários olhos foram esfregados como que para confirmar se o que estavam a ver era real. Quando a bruxa pousou as asas negras numa garrafa de Fernet, um cliente habitual gritou: “Feche a sua conta, estou a ver coisas!”. Saiu a correr, olhando por cima do ombro mais de uma vez antes de chegar ao passeio.

Não sei se foi sugestão, receio ou cautela, mas mesmo com a tempestade a cair, o bar estava vazio. Ainda se ouvia alguém a dizer: “Delirium tremens, é assim que se chama!”